Por Roberto Lagarto
As sociedades ditas ocidentais têm como horizonte a igualdade entre os seres humanos, pelo menos em um plano ideológico. Acreditamos que todos/as os seres humanos são iguais e por isso estão todos/as sujeitos/as a mesma lei e moralidade de cada local. Apesar de ainda existirem vários focos de racismo e sexismo, ainda que de forma velada, a sociedade ocidental atual abomina manifestações diretas de preconceito. Ainda que vivamos sob a ótica da acumulação capitalista e da desigualdade, a moralidade vigente preza pela igualdade – sob a ótica da formalidade da lei – entre os seres humanos. Mas é cabível a reflexão: Somos todos/as iguais?
Nem o/a mais ferrenho/a defensora da igualdade, e/ou o ser humano mais contrário ao sexismo e o racismo discordará que somos diferentes. Somos altos/as, baixos/as, gordos/as, magros/as, propícios/as ao conhecimento de matemática enquanto outros/as preferirão se dedicar as reflexões éticas. Somos diferentes, isso é um fato. Não só homens e mulheres, brancos e negros, somos mesmo como seres humanos pertencentes à mesma raça, etnia, sexo e cultura, diferentes entre si. Mas essa diferença é suficiente para determinarmos diferentes considerações morais a diferentes grupos? Digo, essa diferença pode ser considerada para tratamentos discriminatórios? Por quê?
Jonh Rawls, filósofo político e teórico da ética, tentou colocar que todos os seres humanos são iguais a despeito de raça e sexo propondo que “uma vez alcançada a idade da razão, cada um tem e vê os/as outros/as como tendo um senso realizado de justiça” (Rawls, 2001, p. 254). Ou seja, segundo Rawls os seres humanos são iguais devido a sua capacidade moral de enxergar no/a outro/a igualdade, o que ele chama de “personalidade moral”. Um conceito bem parecido com Kant que baseia a igualdade dos seres humanos em sua capacidade de raciocínio. Como sintetiza Carvalho (2003) “o homem se identifica com a razão e todo ser racional é um fim em si mesmo”. E isso garante ao ser humano igualdade nas deliberações morais a despeito de raça e/ou sexo. Perguntamos-nos então se a capacidade de raciocínio é uma premissa suficiente para considerarmos a igualdade humana.
Singer (1979) nos propõe o seguinte exercício: se fizéssemos um teste de QI nos seres humanos, a fim de verificar sua capacidade de raciocínio e separássemos os seres humanos entre os que tiraram médias acima de 150, entre 100-149 e os que tiraram abaixo de 100. Nessa divisão social teríamos respectivamente os donos de escravos, os seres humanos livres, porém sem direito a escravos e os que tiraram a menor nota seriam escravos dos de maior nota. Uma divisão coerente com os preceitos de capacidade de raciocínio segundo Kant, porém uma tirania da qual, se não todos/as, a maioria dos seres humanos abominaria. Pontuando então que a condição de igualdade oferecida por Kant, não resiste a uma reflexão mais aprofundada.
Percebendo-se que não somos todos iguais, nem se quer em nossas capacidades de raciocínio, o que nos torna iguais a despeito de raça, sexo e, incluso agora, capacidade de raciocínio?
O que definiria então o ser humano como igual? Seria o polegar opositor e o tele encéfalo altamente desenvolvido (FURTADO, 1989)? Ora, então o que seria dos/as pessoas acometidas de graves deficiências físicas e/ou mentais? Nem todos/as temos o tele encéfalo altamente desenvolvido, outros/as nem sequer possuem polegar, ou sequer mãos! Seriam então essas pessoas não são passiveis de considerações morais?
Singer (1979) nos propõe o “princípio da igual consideração de interesses” em que ele pontua que todo interesse, a despeito de sexo, raça, etnia e/ou capacidade de raciocínio deve ser considerado, nas palavras do mesmo: “Um interesse é um interesse, seja lá de quem for esse interesse.”
Singer (1975) reitera também que “a igualdade é uma idéia moral, não a descrição de um fato” não havendo assim qualquer justificativa para que a diferença entre duas pessoas justifique diferentes considerações de seus interesses.
Fazendo uma aplicação prática desse princípio podemos imaginar dois indivíduos sentindo dor, em mesmo nível. O princípio fundamental para o alívio da dor é simplesmente a indesejabilidade da dor enquanto tal (SINGER, 1979), ou seja, a despeito da raça, sexo, etnia e/ou capacidade de raciocínio os interesses dos dois indivíduos são idênticos, não sentir dor. A dor de X e Y são consideradas igualmente segundo o princípio da igual consideração de interesses, e não apenas a dor de X ou a dor de Y.
O princípio da igual consideração de interesses não impõe que tenhamos um tratamento igual, mas que levemos em conta os interesses de todos/as envolvidos/as em nossas decisões com o mesmo peso. No caso da dor de X e Y podemos inferir que a dor de X seria mais forte do que a dor de Y, portanto atribuiríamos maior peso a dor de X, mas ainda assim o interesse de Y no alívio da dor seria levado em conta.
Na sociedade escravagista que imaginávamos - baseada na capacidade de raciocínio - o princípio de igual consideração de interesses também é suficiente para execrá-la na medida em que o princípio leva em consideração os interesses de cada pessoa por igual a despeito de suas “incapacidades”, desde que suas incapacidades não sejam relevantes para o interesse em questão, como por exemplo, a incapacidade mental grave se levássemos em consideração o interesse de uma pessoa em votar (SINGER, 1979).
É claro que não sabemos onde esse princípio pode nos levar enquanto não sabemos os interesses dos/as envolvidos/as. Como por exemplo, o interesse dos animais. Não temos nenhum canal de diálogo direto com os animais, portanto aparentemente não sabemos quais são seus interesses. Porém a proposta é que o princípio de igual consideração de interesses seja aplicado para além da capacidade de raciocínio, ampliando-se o princípio para aplicação, além de raça, sexo, etnia e capacidade de raciocínio, para espécie.
O que nos deixa numa grande “sinuca de bico” segundo o dito popular. Como aplicar o princípio da igual consideração de interesses sem sabermos os interesses dos seres envolvidos?
Sabe-se que os animais vertebrados, são seres sencientes, ou seja, capazes de sentir dor. E como já colocamos anteriormente, o interesse comum na da dor é a indesejabilidade de senti-la. Portanto o princípio da igual consideração de interesses deve ser aplicado para os animais na medida em que eles são capazes de sofrer e/ou sentir prazer. Essa capacidade de sofrer ou sentir prazer é um pré-requisito para que possamos delimitar os interesses dos indivíduos nas nossas deliberações morais.
A senciência, ou capacidade de sofrer e sentir prazer é um pré requisito para que algum indivíduo, independente da espécie, tenha interesses. Por exemplo: Se ao digitar esse texto meu computador falhasse e eu o chutasse, seria um contra-senso afirmar que não era do interesse dele ser chutado. Um computador não tem interesses, pois não tem a capacidade de sofrer, ele não sente absolutamente nada. Ao contrário de que, se nessa mesma situação, eu chutasse o meu gato. Posso afirmar com certeza que é do interesse do meu gato não ser chutado, pois se eu assim o fizer ele sofrerá. A senciência é, portanto, necessária e, também, suficiente para que possamos assegurar que um ser tem interesses. No mínimo, como já foi dito antes, o de não sofrer. Assim nossas deliberações morais devem ser aplicadas na medida em que elas não causem dor e sofrimento aos seres envolvidos.
Consequentemente não levar em consideração os animais em nossas deliberações morais só pode ser aceitas se forem deliberações de cunho especista.
O especismo é uma forma de discriminação tão arbitrária quanto o sexismo e o racismo. O especismo está para raça assim como sexismo está para o sexo. O especista, em suas deliberações morais, atribui maior peso a sua espécie tal qual um/a racista o faz para a sua raça. Nas palavras de Singer (1975):
“Os racistas violam o princípio da igualdade ao conferirem mais peso aos interesses de sua própria raça quando há um conflito entre seus interesses e os daqueles que pertencem a outras raças. Os sexistas violam o principio da igualdade ao favorecerem os interesses de seu próprio sexo. Analogamente, os especistas permitem que os interesses de sua própria espécie se sobreponham àqueles maiores de membros de outras espécies. O padrão é idêntico em todos os casos.”
Portanto, baseado no princípio da igual consideração de interesses o especismo é tão errado quanto o sexismo ou o racismo, pois baseia a suas considerações morais de acordo com um dado arbitrário, no caso a espécie, não levando em conta os interesses dos/as indivíduos envolvidos.
Se um ser sofre não há qualquer justificativa moral para não levarmos em conta esse sofrimento (SINGER, 1975). Independente de sua raça, sexo, etnia, capacidade de raciocínio ou espécie, um ser que sofre tem, no mínimo, o interesse em não sofrer, e de acordo com o princípio de igual consideração de interesses, devemos considerar tal interesse a despeito de características aleatórias, como a espécie. Esse princípio exige que esse sofrimento possa ser comparado, na medida do possível, em pé de igualdade com o sofrimento de outros/as semelhantes.
Sendo animais seres capazes de sofrer, e, portanto de ter interesses, tais quais não sofrer e realizar sua vida em liberdade, não há qualquer justificativa moral para não considerá-los em nossas deliberações morais.